Copa à moda


Confesso com a paz instalada entre o coração e a alma que o momento mais empolgante da minha vida de estudante do curso clássico do Dante Alighieri deu-se quando o professor Carletti, de Educação Física, me convocou para o time do colégio. Não fujo à regra, gosto da redonda e a ela mantenho-me fiel, embora já não ouse adentrar ao gramado. Um bom jogo consegue bloquear-me diante do vídeo, com a insopitável tendência a torcer pelo mais fraco.
Na adolescência fui do Palmeiras, de sorte a precipitar em meu irmão Luis um súbito pendor corintiano, cultivado pelo prazer da polêmica. Há muito tempo deixei quase sempre de torcer a favor, em compensação aprimorei o vezo de torcer contra. Contra o mais forte porque mais endinheirado, mais exibido, mais prepotente, amiúde o mais disposto à corrupção. Neste momento, a caminho do Mundial de 2014 a ser disputado no Brasil enquanto a seleção canarinho cobre-se de vergonha, percebo uma mudança notável nos comportamentos da torcida brasileira.
O futebol nos toca nas entranhas, não há outro país onde a bola influa de forma tão imperiosa nos humores cotidianos da nação, a funcionar como fator de união e de apelo à identidade. Capaz até de propiciar um raríssimo instante de igualdade, na terra tão desigual, na hora em que o herdeiro da casa-grande levanta hosanas ao herdeiro da senzala e o eleva ao altar dos heróis da pátria de chuteiras.
E então, vejamos. Permito-me alimentar a certeza de que uma pesquisa capilar provaria que a torcida brasileira não está somente decepcionada com os desempenhos da seleção, e tem boas razões para tanto, mas também, e sobretudo, ofendida pelas trajetórias assumidas pelos negócios da bola. Façam a sua própria investigação, perguntem ao acaso: terão de verificar que a maioria identifica o time nacional com as mazelas da CBF, vislumbra a bandalheira no rumo da Copa e se inclina, espanto dos espantos, a torcer contra.
Pergunto aos meus bolipédicos botões se haverá precipitação no entendimento de que a mediocridade dos canarinhos de hoje é da responsabilidade de Ricardo Teixeira. Repicam, não sem aspereza, haver uma ligação escancarada entre o business e o futebol, e Teixeira é o perfeito intérprete desta associação celerada, nutrida pela lavagem de dinheiro e a supervalorização de moços despreparados para fortunas e badalações exorbitantes. Os próprios e enfadonhos torneios realizados no Brasil provam a decadência. Antes moral do que técnica.
Creio viver uma quadra importante, de um certo ângulo, ao observar o amadurecimento da torcida. Ela se habilita a dimensionar a paixão futebolística dentro da realidade contingente, emoldura-a ao sabor da circunstância acabrunhadora. Trata-se de um grande avanço, e se o torcedor entende a primazia da questão moral, e política, e nesta perspectiva consegue enxergar os males do futebol atual, em primeiro lugar evolui como cidadão.
Recordo o Mundial de 1970, e do meu desapontamento ao constatar que até nas masmorras do terror de Estado presos e torturados gritavam gol. Ao cabo, o ditador Emilio Garrastazu Medici, senhor de uma fase duríssima, talvez a mais feroz em 21 anos de ditadura, celebrou a vitória final do Brasil de Pelé e cia. com uma festa popular na Praça dos Três Poderes e, no auge do arrebatamento, entregou-se a umas embaixadas com uma bola de borracha.
No começo da semana liguei para Juca Kfouri, o jornalista mais processado por Ricardo Teixeira, queria cumprimentá-lo pela substanciosa entrevista que CartaCapital publicou na edição passada. Falou-me de um sonho dele, a trair alguma esperança: ah, se a presidenta se desse conta do risco que todos corremos… Não se trata de espremer as meninges para concluir que com Teixeira estamos nas piores mãos, como se não bastasse Joseph Blatter. E a respeito desta personagem mafiosa é bom lembrar que na Alemanha em 2006 as coisas não correram como teria desejado.
A Fifa, sabe-se, pretende impor as suas regras, a atropelar soberanias nacionais, e aqui vale a referência, em vez de esbanjar ignorância e estultice para dar guarida a um criminoso como Cesare Battisti. A Alemanha recusou-se a atender a várias demandas do herdeiro de João Havelange e fez uma Copa à feição alemã. A mais vergonhosa derrota que o Brasil e Dilma Rousseff podem sofrer em 2014, independentemente do resultado dos gramados, é um Mundial à moda de Ricardo Teixeira.

Mino Carta

Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br