Marina e a anti-política

Em outubro de 2013, Luiza Erundina concedeu uma entrevista em que afirmava que Marina Silva deseduca e desorganiza a sociedade ao fazer um discurso anti-partido e anti-política. De lá para cá não sabemos se Erundina ainda pensa o mesmo sobre Marina, mas sua análise não deixa de ser correta por conta disso. O discurso contra os partidos e contra a política fortalece a ideia de um líder que se comunica diretamente com as massas atropelando as instituições democráticas. Isso leva não só ao enfraquecimento da legitimidade do sistema político, como também da própria participação democrática do cidadão. O líder assume o papel de “pai” ou “mãe” do povo que resolve tudo, bastando que o cidadão confie nele. Este tipo de comportamento é típico de regimes totalitários, que acreditam que o debate de opiniões e o conflito de interesses “atrapalha” o “bom governo”, que seria a união de todos em torno do grande líder. Nesse discurso, o conflito de interesses na sociedade é visto como algo ruim a ser combatido. Na verdade, a administração do conflito é a essência da vida política. 

A política moderna parte do pressuposto de que não é possível agradar a todos, isso porque os desejos das pessoas são infinitos, mas os recursos não. Mesmo em países ricos, como a Suíça, ainda existem conflitos de interesses, o que dirá em um país em que há uma brutal concentração da riqueza nas mãos de poucos, como no Brasil. É por isso que, Nicolau Maquiavel, o pai da política moderna, afirma que não basta ser “uma pessoa boa” para produzir um bom governo, ao contrário, o governante deve inclusive aprender a ser mau para que possa valer-se disso conforme a necessidade. Ou seja, Maquiavel está preocupado mais com a governabilidade do que com o governo em si. Isso quer dizer que Maquiavel achava que os políticos deveriam ser corruptos? Claro que não, a questão é: para que serve a política? A política é um sistema autoritativo de administração do poder. Autoritativo não quer dizer autoritário, quer dizer um sistema legítimo e reconhecido por todos. O contrário da política é a violência generalizada em que cada um resolve seus conflitos através da força. Em uma situação assim, nem os fortes estão em paz, pois não há garantia de que outros não venham tirá-lo do poder. Quando predomina a convulsão social e o conflito generalizado, ninguém sai ganhando, pois a previsibilidade é essencial para saúde da vida econômica. Por isso, as sociedades humanas inventaram o Estado como forma de administrar os conflitos e dar previsibilidade ao sistema garantindo os direitos de cada um através da lei. Em uma república democrática, como é o nosso caso, os diferentes interesses (movimentos sociais, operários, empresários, banqueiros, latifundiários, lavradores, etc.) se expressam através de ideias políticas e partidos. É claro que nem todos vão sair com seus interesses satisfeitos. Por exemplo, se os juros sobem, os banqueiros saem ganhando, mas empresários e pessoas que fazem compras a prazo vão sair perdendo. Portanto, cada decisão política vai depender do poder de cada grupo dentro do jogo político.

Apesar de todas as distorções do nosso sistema representativo, em que os ricos conseguem eleger mais representantes que os pobres e que fortes grupos econômicos corrompem políticos para beneficiar seus interesses. Ainda assim é preferível contar com um sistema político em que podemos lutar para torná-lo mais justo e democrático, do que com um sistema autoritário em que um líder decide segundo os interesses de seus aliados ou a ingovernabilidade que surge da impossibilidade do governante de construir uma base de apoio permanente. 

No caso de Marina, a ameaça da ingovernabilidade é a mais latente. A proposta da candidata Marina Silva é governar com os “bons” de todos os partidos políticos. Isso pressupõe que os partidos não têm ideologia nem defendem interesses conflitantes, apenas que são formados por “bons” e “maus”. Como dizia Aristóteles, não existe um conceito universal sobre o que seja bom, ou o bem. Por exemplo, uma arma boa é a que mata de modo eficiente, um bom médico é o que cura seus pacientes. Além disso, alguém pode ser um bom professor, mas não ser um bom marido ou cozinheiro. O que talvez a candidata queira dizer é que vai escolher aliados que não tenham um histórico de corrupção. Mas aqui também há uma dificuldade, porque ninguém é criminoso antes de cometer um crime ou ser descoberto, aliás um “bom” criminoso é aquele que nunca é apanhado. Então, como compor um governo só com os bons? Novamente Maquiavel nos dá uma dica: não importa se a pessoa é boa ou má, o importante é ter mecanismos de controle eficientes para evitar a corrupção e o abuso de poder. O que precisamos é de um sistema de controle e um aparato judiciário mais eficiente. Assim, nem mesmo os “maus” vão ter desvios de conduta por medo de sofrerem severas punições. Países com baixos níveis de corrupção são aqueles que têm instituições democráticas mais eficientes e transparentes. No caso do Brasil, é preciso uma ampla reforma política e judiciária para avançarmos em nossa democracia. 

É por isso que a proposta de Marina deseduca, pois ela não fala em fortalecer a representação popular ou melhorar o nosso sistema partidário, mas sim em enfraquecer os partidos cooptando seus quadros. Os parlamentares dispostos a fazer isso são justamente aqueles que não têm compromissos com seus eleitores e que consideram o mandado como propriedade privada e não como representação de interesses de setores ou grupos sociais. Uma base formada só por mercenários não é capaz de se agrupar em torno de objetivos, o que gera a ingovernabilidade. Deseduca também porque cria na população, principalmente nos mais jovens, o sentimento de que os políticos são todos corruptos e que a política é uma coisa “suja”. 

É verdade que existe corrupção na política, mas este não é o principal problema e sim a grande maioria da população (mulheres, negros, jovens, indígenas, etc.) não estar representada no legislativo, nem na maioria do executivo em nosso país. A forma de mudar isso não é negando a política e os partidos, mas justamente o contrário: participando da política através de manifestações populares, protestos, iniciativas populares e, claro, também através da política partidária. Somente com partidos fortes, o que quer dizer, com ampla participação popular, é que se constrói uma democracia forte e não com partidos de aluguel que ontem defendiam o socialismo e hoje defendem os capitalistas.
Prof.dr.Josué Cândido da Silva
Ele é professor titular na Universidade Estadual de Santa Cruz.