Guilherme Riscali: A direita que nunca pode dizer que é direita

por Guilherme Riscali

Ciclope: E você, estranho, diga‑me o nome pelo qual devo lhe chamar.

Odisseu: Ninguém. E que vantagem vou ganhar para lhe agradecer?
(Eurípides, Ciclope, vv.549‑50)

Já ganharam o DCE na UFRGS, venceram na UnB, agora na UFMG e estão crescendo na USP. Novos grupos aparecem no cenário do movimento estudantil (ME) por todo o país. Suas propostas se dizem revolucionárias, embora tenham tremuras diante de qualquer menção da palavra ‘revolução’. Ótimo – poderíamos dizer – a diversidade política é uma vitória para a capacidade de formulação e de atuação dos movimentos dos estudantes. Mas será que esses grupos estão prontos para se admitirem como parte de uma diversidade política?

Muito já se falou sobre sua ligação com setores abertamente conservadores da política do país. O que talvez ainda falte escrutinar é o que está por trás da insistência, apesar dessas ligações claras, de um discurso do apartidarismo, que é lugar comum entre esses grupos emergentes.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, de fato, a atuação partidária no movimento estudantil tem tido dificuldades para operar em sincronia com as reivindicações e mobilizações dos estudantes. É claro que existem problemas surgidos do fato de que certas correntes – ligadas ou não a partidos – frequentemente parecem confundir os interesses coletivos com os de seus coletivos e colocar à frente do movimento pautas que nem sempre são o desejo da maioria. Ninguém que já tenha participado de alguns dos fóruns principais do ME seria capaz de negá‑lo. Todos reconhecem os problemas, mais ou menos abertamente, e muitos (inclusive correntes partidárias) estão seriamente empenhados em superá‑los.

Sem dúvida é mais fácil, diante disso, colocar‑se à parte dos problemas, apontar, condenar, e prometer um mundo novo. É uma estratégia de fácil cooptação política e arrecadação de votos. Surpreende, porém, a veemência com que seus membros negam sua óbvio relação com organizações políticas conservadoras, e a preocupação enorme que têm em desligar seus nomes daqueles de partidos políticos tradicionais da direita (como PP, DEM e PSDB). Por que esses grupos insistem no apartidarismo como meio de se distinguir de todo o conjunto do movimento estudantil existente?

Que a imagem dos partidos a que esses grupos se ligam não seja lá das melhores certamente é um bom motivo. Mas algo ainda mais preocupante parece se esconder por trás desse discurso. Há razões para suspeitar de que existe mais aí do que simplesmente tática eleitoral, e que essa insistência provém, isso sim, de uma posição política bastante peculiar.

É preciso pensar, então, no significado amplo de ‘partido’. Esse partido que eles rejeitam, mais do que a instituição política organizada, é a própria ideia de uma partição específica num coletivo social.

“Não se trata aqui de crítica à esquerda ou à direita. A crítica a ser feita é contra a partidarização e ideologização do movimento estudantil” – dizem, em seu texto de apresentação (1), sempre fazendo questão de ressaltar o seu distanciamento de qualquer inflexão política. Esquerda e direita são conceitos ultrapassados, preocupação de gente rancorosa. Classes sociais? Doutrina marxista.

Pretendem um campo social homogêneo, não partido, não dividido, que não discorda sobre as decisões a serem tomadas e que pensa sempre da mesma maneira. Sua pretensão é a de superar as disputas políticas e aparecer como chapa branca, neutra. Eles engendram, na verdade, “não um discurso político novo, mas o discurso sobre a política como tal, discurso que se circunscreve procurando em si mesmo sua garantia, que aspira à transparência do sentido ao se fazer conhecer por um sujeito universal (ou, melhor dizendo, fingindo não ser o discurso de ninguém, não ser falado de parte alguma e se oferecer a todos)” (2).

É um discurso que, para funcionar, exige a absoluta pacificação do campo do político. Isso porque precisa assumir um político absolutamente liso, sem dobras ou fissuras. É preciso ignorar que existem fraturas irreconciliáveis no campo do social, gerando tensões que não podem ser meramente suprimidas do registro político. Antes de tudo, constroem sua imagem colocando‑se fora do jogo político, negando‑o. Eles não têm interesses, apenas advogam “defender a Representação Discente livre, soberana e isenta de interesses político‑partidários” (3). Não reconhecem que haja qualquer tipo de interesse político em sua atuação porque não podem aparecer como uma partição, como parciais. Tendo então negado a divisão social e a disputa política, finalmente podem aparecer como um discurso da totalidade, de todos os estudantes, sem partido.

Neutralizados enquanto sujeitos políticos, devidamente transformados em ‘ninguéns’, esses grupos podem aparecer como simples administradores executando a vontade de um conjunto social totalmente apaziguado. É a partir da negação de sua própria identidade política que armam o seu jogo, e por sua identidade política supostamente vazia se tornam atraentes. Tornam‑se invólucros sem vontade, a serem preenchidos, sem atrito, sem resistência, pelo rosto desse mítico ‘todos’. São como aqueles antigos cenários de fotos em que podíamos colocar o próprio rosto no corpo de vários tipos de personagens (esse, infelizmente, no corpo de um boneco abraçado ao Maluf).

Em nenhum momento esses grupos se posicionam politicamente num debate que é abertamente político. Eles escamoteiam suas críticas, com a ajuda de inúmeros dados técnicos, sob a forma de simples alterações no modus operandi do movimento estudantil, sem nunca deixar claras suas intenções (4). Baseiam “suas atividades na assistência aos discentes, na defesa da excelência acadêmica e na eficiência em projetos que tenham como foco prioritário a própria comunidade universitária” (5).

Faz parte de seu projeto: o esvaziamento do campo político vem acompanhado da ideia de que tudo se trata de uma questão administrativa, técnica mesmo. Agora é uma questão de certo e errado ou, com mais argúcia, de eficiente e ineficiente. Está completa a sua ideologia.

Falta‑lhes, por sorte, a astúcia de Odisseu. Esse discurso já não é mais novidade. A ideia de um social homogêneo, a ilusão da política como técnica, a aspiração à totalidade são procedimentos clássicos da ideologia direitista, que podemos prontamente identificar. Procedimentos de uma direita que, para funcionar, não pode nunca dizer que é a direita, e tem necessidade de “disfarçar os traços das condições de sua formação” (6), de apagar suas pegadas (e fotos com o Geraldo Alckmin), e esconder os seus rastros. Esse é o discurso ideológico, de fato, que precisa ser escancarado se quisermos um debate político – pois é disso que se trata – aberto e efetivo. A diversidade política, de nossa parte, é sempre benvinda, desde que ao menos se reconheça que ela existe.


Guilherme Riscali é estudante de graduação de Filosofia da USP.