Familiares e ex-companheiros, com o apoio da Comissão de Anistia e do Grupo Tortura Nunca Mais/BA, reúnem personalidades políticas, intelectuais, artistas e representantes de entidades e movimentos sociais para prestar homenagem ao líder revolucionário baiano Carlos Marighella, tido pelo governo militar como inimigo número um da ditadura, que completaria no próximo dia 5 de dezembro cem anos de nascimento. Um ato público marcará o início das comemorações pelo Centenário.
O evento acontece na próxima sexta-feira, 04 de novembro, a partir das 16h, no Cemitério de Quintas, em Salvador, onde se encontra o túmulo de Marighella, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, amigo do homenageado. Carlos Marighella foi assassinado em São Paulo, no dia 4 de novembro de 1969, por agentes do DOPS, órgão responsável pela execução de muitos opositores do regime militar, e seus restos mortais foram trazidos para Salvador em 10 de dezembro de 1979 – Dia Universal dos Direitos do Homem, logo depois da promulgação da Lei de Anistia, em cerimônia que teve a presença e participação de centenas de pessoas para ouvir a leitura de uma mensagem escrita por Jorge Amado, amigo de Marighella e seu companheiro na bancada comunista da Assembléia Nacional Constituinte e na Câmara dos Deputados entre 1946 e 1948, lida na ocasião por Fernando Santana.
Saravá, Carlos!
Chegas de longa caminhada a este teu chão natal, território de tua infância e adolescência. Vens de um silêncio de dez anos, de um tempo vazio, quando houve espaço e eco apenas para a mentira e a negação. Quando te vestiram de lama e sangue, quando pretenderam te marcar com o estigma da infâmia, quando pretenderam enterrar na maldição tua memória e teu nome. Para que jamais se soubesse da verdade de tua gesta, da grandeza de tua saga, do humanismo que comandou tua vida e tua morte. Trancaram as portas e as janelas para que ninguém percebesse tua sombra erguida, nem ouvisse tua voz, teu grito de protesto.
Para que não frutificasses, não pudesses ser alento e esperança. Escreveram a história pelo avesso para que ninguém soubesse que eras pão e não erva daninha, que eras vozeiro de reivindicações e não pragas, que eras poeta do povo e não algoz. Cobriram-te de infâmia para que tua presença se apagasse para sempre, nunca mais fosse lembrada, desfeita em lama.
Esquartejaram tua memória, salgaram teu nome em praça pública, foste proibido em teu país e entre os teus. Dez anos inteiros, ferozes, de calúnia e ódio, na tentativa de extinguir tua verdade, para que ninguém pudesse te enxergar. De nada adiantou tanta vileza, não passou de tentativa vã e malograda, pois aqui estás inteiro e límpido. Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia, e desembarcas na aurora da Bahia, trazido por mãos de amor e de amizade. Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui estás entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue. Vieram te receber e conversar contigo, ouvir tua voz e sentir teu coração. Tua luta foi contra a fome e a miséria, sonhavas com a fartura e a alegria, amavas a vida, o ser humano, a liberdade. Aqui estás, plantado em teu chão e frutificarás. Não tiveste tempo para ter medo, venceste o tempo do medo e do desespero. Antonio de Castro Alves, teu irmão de sonho, te adivinhou num verso: “era o porvir em frente do passado. Estás em tua casa, Carlos; tua memória restaurada, límpida e pura, feita de verdade e amor. Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos”.
Espera-se a presença da companheira e viúva Clara Charf e do filho de Marighella, Carlos Augusto. Também estará presente o jornalista e deputado Emiliano José, que dedicou a Marighella um dos seus livros de maior sucesso, bem como o vereador Italo Cardoso, representando a Câmara Municipal de São Paulo que recentemente concedeu a Marighella o titulo “post mortem” de cidadão paulista. A Comissão de Anistia será representada pela Conselheira baiana Ana Guedes, militante política integrante do GTNM da Bahia.
QUEM FOI MARIGHELLA: Nascido em Salvador, na Bahia, Marighella ficou conhecido pelo seu talento de estudante fazendo provas em versos no Colégio Central. Aos 18 anos iniciou curso de Engenharia na Escola Politécnica da Bahia e tornou-se militante do Partido Comunista. Conheceu a prisão pela primeira vez em 1932, após escrever um poema contendo críticas ao interventor da Bahia. Em 1932 muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1º de maio de 1936 Marighella foi novamente preso e enfrentou, durante 23 dias, as terríveis torturas da polícia. Permaneceu encarcerado por um ano sendo solto pela “macedada” – nome da medida que libertou os presos políticos sem condenação. Transferindo-se para São Paulo, Marighella passou a agir em torno de dois eixos: a reorganização dos comunistas, duramente atingidos pela repressão, e o combate ao terror imposto pela ditadura de Getúlio Vargas. Voltaria aos cárceres em 1939, sendo mais uma vez torturado de forma brutal na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, mas se negando a fornecer qualquer informação à polícia. Recolhido aos presídios de Fernando de Noronha e Ilha Grande pelo seis anos seguintes, ele dirigiria sua energia revolucionária ao trabalho de educação cultural e política dos companheiros de cadeia. Anistiado em abril de 1945, participou do processo de redemocratização do país e da reorganização do Partido Comunista na legalidade. Foi eleito deputado federal constituinte pelo estado da Bahia. Com o mandato cassado pela repressão que o governo Dutra desencadeou contra os comunistas, Marighella foi obrigado a retornar à clandestinidade em 1948, condição em que permaneceria por muitos anos. Nos anos 50, exercendo novamente a militância em São Paulo, tomaria parte ativa nas lutas populares do período, em defesa do monopólio estatal do petróleo e contra o envio de soldados brasileiros à Coréia e a desnacionalização da economia. Cada vez mais, Carlos Marighella voltaria suas reflexões em direção do problema agrário, redigindo, em 1958, o ensaio “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil”, o primeiro de uma série de análises teórico-políticas que elaborou até 1969, incluindo temas que expressavam a importância da paz e do socialismo e a partir de 1959 defesa da Revolução Cubana, vista por Marighella como um exemplo para a America Latina. Em 1960 participa ativamente das homenagens que foram prestadas a Che Guevara no Brasil. Após o golpe militar de 1964, Marighella foi novamente preso. Repetindo a postura de altivez das prisões anteriores, Marighella fez de sua defesa um ataque aos crimes e ao obscurantismo que imperava desde 1º de abril. Conseguiu, com isso, catalisar um movimento de solidariedade que forçou os militares a aceitar um habeas-corpus e sua libertação imediata. Desse momento em diante, intensificou o combate à ditadura utilizando todos os meios de luta na tentativa de impedir a consolidação de um regime ilegal e ilegítimo. Na ocasião, Carlos Marighella aprofundou as divergências com o Partido Comunista, criticando seu imobilismo. Em dezembro de 1966, em carta à Comissão Executiva do PCB, requereu seu desligamento da mesma, explicitando a disposição de lutar revolucionariamente junto às massas, em vez de ficar à espera das regras do jogo político e burocrático convencional que, segundo entendia, imperava na liderança. E quando já não havia outra solução, conforme suas próprias palavras fundou a ALN – Ação Libertadora Nacional para, de armas em punho, enfrentar a ditadura. Na noite de 4 de novembro de 1969, surpreendido por uma emboscada, Carlos Marighella tombou varado pelas balas dos agentes da repressão. Em 1979, com o advento da Lei de Anistia, Marighella tem os seus restos mortais trasladados para Salvador, sua cidade natal, onde foi sepultado em túmulo projetado pelo seu amigo de décadas, Oscar Niemeyer.
No atual momento cresce no Brasil um amplo movimento de reconhecimento histórico, que atribui a Marighella papel importante na derrota da Ditadura de 1964 ao tempo em que identifica o seu perfil político como de autentico herói nacional. Nesse contexto foi recentemente lançada a campanha PRO-MEMORIAL MARIGHELLAVIVE que pretende levantar recursos para construir em Salvador- Bahia um Memorial dedicada a difusão do pensamento político de Marighella e destacar sua coerência como valor de inspiração da juventude brasileira.
“Por tudo isso, celebrar a memória de Carlos Marighella, nestes quarenta anos que nos separam da sua covarde execução, é reafirmar o compromisso com a marcha do Brasil e da Nuestra America rumo à realização da nossa vocação histórica para a liberdade, para a igualdade social e para a solidariedade entre os povos. Celebrando a memória de Carlos Marighella, abrimos o diálogo com as novas gerações garantindo-lhes o resgate da verdade histórica. Reverenciando seu nome e sua luta, afirmamos nosso desejo de que nunca mais a violência dos opressores possa se realimentar da impunidade. Carlos Marighella está vivo na nossa memória e nas nossas lutas. “
Comissão PRO-MEMORIAL MARIGHELLA VIVE
MARIGHELLA SEGUNDO JORGE AMADO:
(Bahia de Todos os Santos–27ª. Edição–1977–Jorge Amado)
AQUI INSCREVO SEU NOME DE BAIANO...
Seu nome ressoou, pela primeira vez, no brilho da inteligência invulgar e na graça de moleque nascido nas ruas da Bahia, quando, estudante de Engenharia, redigiu em versos uma prova de matemática. Comentou-se na cidade a inspiração e a verve do acadêmico. Talento e informalidade marcaram para sempre seu perfil belo e másculo, sua face pura.
Líder estudantil, ainda adolescente foi tomado preso, cumpriu dez anos de prisão, entre as grades passou a juventude. Não perdeu o ânimo nem o riso, não se fez amargo. Sabia rir como pouca gente no mundo soube fazê-lo, riso franco, sadio, confiante.
Fraterno amigo, desde os dias de primeira juventude, na Bahia; depois, num longo quotidiano de esperança e desespero, no comício, no jornal, debruçado sobre os livros e sobre a vida, em meio ao povo ou nas bancadas da Câmara dos Deputados. Na chata solenidade legislativa, repontada no deputado ativo e responsável o espírito de moleque baiano, do estudante da Escola Politécnica. Subia a tribuna, punha em pânico os parlamentares. Juntos escrevemos vários discursos, lidos por outros. Num deles, enorme, passamos em revista todos os problemas do país. Pronunciado com extrema dignidade por Claudino José da Silva, único deputado negro da Assembléia Constituinte de 1946, durou quatro horas. As palavras eram pedras e raios; o tempo passava, o discurso prosseguia, eterno. Mesmo os mais reacionários ouviram em silêncio, não tiveram coragem de abandonar a sala.
Dentro dele a ternura a ira. Conhecia de perto a miséria e a opressão mas conhecia também a força e a capacidade de resistência do povo. De quando em vez releio seus poemas, sabiam que ele foi poeta? Ternura e ira em seus poemas simples, claros, brasileiros. Sendo homem de ação mais que um teórico, a poesia marcou cada instante de sua vida. Tudo nele era sincero, digno e puro.
Se errou, o fez na busca de acertar. Em certa tribuna ilegal eu o vi chorar, como um menino órfão, quando o ídolo ruiu, rotos os pés de barro. Eu estava vazio por dentro, pois soubera antes e lhe contara; não acreditou. Ao ter a prova, ficou siderado, durante certo tempo perdeu a graça e o riso; no meio do povo os recuperou. Manteve até o fim o bom humor e a pureza; amadureceu sem deixar de ser o estudante adolescente: mestiço de sangue negro e sangue italiano, como Dorival Caymmi, mistura de primeira.
Morreu numa emboscada. Deixou mulher, irmãos e filho, deixou inúmeros amigos, um povo a quem amou desesperadamente e a todos legou uma ação de invencível juventude, de inabalável confiança na vida e no humanismo. Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella.
MARIGHELLA: POETA & LIBERTÁRIO (Extraído da Coletânea: Uma prova em versos e outros versos de Carlos Marighella
LIBERDADE
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em fervido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importante.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.
(São Paulo, Presídio Especial, 1939).