O caminho das pedras

Foi uma criança prodígio. Dissecava drosófilas aos 6 anos de idade e resolvia equações aos 8. A família exibia seus dotes para os vizinhos e o avô vaticinava: vai ser cientista. Destino marcado, carreira definida. Um quarto de década depois realizou a profecia do avô. Graduou-se com pompa e doutorou-se com circunstância. Conquistou um posto em um templo do saber e colocou seu cérebro a serviço da ciência. Agora só falta aprender a escrever. Surpreendente? Nem tanto.
Hoje, não basta descobrir a cura do câncer ou a fórmula para a estabilização da economia mundial. É preciso definir o nível de análise, utilizar o referencial teórico adequado e empregar a metodologia correta. Louis Pasteur, Adam Smith e Sigmund Freud teriam seus trabalhos rejeitados nas principais revistas científicas de nosso tempo. Os avaliadores denunciariam a falta de rigor estatístico, as amostras insuficientes e o conteúdo opiniático dos trabalhos.
Nos últimos anos, aumentou consideravelmente a pressão sobre os pesquisadores brasileiros para que elevem seus índices de publicação. Gostemos ou não, a ciência está hoje organizada como uma grande linha de produção, na qual os operários ganham por metro de artigo publicado. Ocorre que a língua oficial da ciência é o inglês e os principais periódicos do mundo são anglófonos, realidade que costuma irritar os anglófobos. Então, precisamos aprender a escrever (e pensar) na língua do bardo.

Em um número publicado em abril de 2011, a revista Pesquisa Fapesp, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, traz matéria sobre o tema. O jornalista Fabrício Marques retrata o desafio enfrentado pelos cientistas e sua consequência: a proliferação de serviços especializados em redação científica.
De fato, serviços de tradução e edição existem há bastante tempo. No exterior, algumas revistas científicas contam com apoio de editores profissionais para aperfeiçoar os textos publicados. Editoras, como a Nature Publishing Group, que publica a revista Nature, e a holandesa Elsevier oferecem serviços de edição e treinamento para quem quiser pagar por eles. Entretanto, a onda atual vai além: envolve orientação para definir o objetivo do artigo, os argumentos centrais e o encadeamento lógico de ideias. Inclui também dicas sobre como valorizar o próprio artigo e como se apresentar aos editores: um verdadeiro trabalho de marketing pessoal. As principais universidades públicas paulistas, responsáveis por parte considerável da produção científica brasileira, entraram na onda, criando áreas internas de apoio aos pesquisadores e contratando serviços de assessoria.
Para os brasileiros, uma das principais dificuldades pode ter origem em nossa estrutura de pensamento. No artigo clássico Cultural Thought Patterns in Intercultural Education, de 1966, o linguista Robert B. Kaplan descreve como indivíduos de diferentes culturas estruturam seus textos. O trabalho foi baseado em sua experiência com estudantes internacionais. O autor constatou que, enquanto estudantes anglo-saxões aplicavam um estilo objetivo, indo direto ao ponto, os asiáticos aproximavam-se em círculos e os russos seguiam uma trajetória titubeante, com ideias mal relacionadas. Não há registro de estudantes brasileiros na amostra de Kaplan, mas eles poderiam ser incluídos em um grupo de comportamento similar ao dos russos.
Kaplan foi criticado por simplificar a realidade e por fazer generalizações impróprias. Ainda assim, suas conclusões continuam- sendo uma explicação convincente para a dificuldade que muitos de nós, latinos, enfrentamos para organizar as ideias e produzir textos no estilo econômico e direto que se tornou dominante na ciência. Se acreditarmos em Kaplan, então a tarefa das novas assessorias de preparação de artigos científicos merece todo o respeito: vencer certos estados de confusão mental é de fato uma tarefa hercúlea.
Ou, talvez, os cientistas possam fazer como as empresas de software ou alguns escritórios norte-americanos de contabilidade, que terceirizam seus serviços na Índia. Exagero? Hoje, sim; amanhã, quem sabe? O fato é que muitos cientistas brasileiros, como seus colegas de outras partes do mundo, estão usando cada vez mais apoio especializado para escrever seus trabalhos e poder encaminhá-los para o duro funil das melhores revistas científicas do planeta.
Usar os recursos disponíveis para aprender o jogo da ciência global é legítimo. Entretanto, a embalagem sozinha não garante o sucesso. É preciso ter uma ideia original, usar a metodologia correta, gerar resultados relevantes e trazer uma contribuição científica significativa. Afinal, nada substitui o conteúdo. •http://www.cartacapital.com.br/