Um romance da razão

Encontro com Rama de Arthur C. Clarke. Foto: Divulgação
Mais um dos clássicos da ficção científica “hard”, o Encontro com Rama de Arthur C. Clarke, originalmente publicado em 1973, acaba de ser reeditado no Brasil (Aleph, 288 págs., R$ 44). “Hard”, neste caso, deve ser entendido como o subgênero da ficção científica cujo núcleo contém especulação séria e bem fundada nas ciências naturais de sua época, mesmo que em alguns aspectos possa ir além do que lhes parece possível – como é o caso, neste romance, do misterioso sistema de propulsão de Rama.

A obra parece querer mostrar ao leigo que a descoberta científica e o contato com uma civilização absolutamente alienígena podem ser emocionantes em si mesmos, sem ser preciso recorrer a demasiados artifícios de drama e violência. O Sistema Solar é governado como uma federação pacífica, de maneira racional, científica e quase utópica. Há poucos perigos e em todos os casos, são superados de cabeça fria, por meio da razão e da tecnologia. Para fãs de ação cinematográfica, será um anticlímax após o outro. Nada de perseguições alucinadas, tiroteios, explosões, monstros escondidos nas sombras ou românticas tramas amorosas. Que o leitor seja devidamente prevenido: os dois lemas expostos na escrivaninha do capitão William Tsien Norton, “O que você esqueceu?” e “Ajude a erradicar a bravura” (capítulo 10) são levados a sério até o fim.
Em seu tempo, o livro foi bem sucedido junto ao público e ganhou vários prêmios literários. Hoje, provavelmente, poucos se sentirão igualmente impactados. Hollywood condicionou o público da ficção científica a contar com cada vez mais ação e cenas espetaculares (esta história dificilmente seria filmada nos dias de hoje sem ser radicalmente reformulada); e por outro, muito do que nos anos 70 era especulação de vanguarda hoje soa tímido e simplista.
No ano de 2130, um sistema de prevenção de impactos de meteoritos detecta, pela primeira vez em muitos anos, um grande objeto desconhecido no Sistema Solar, batizado “Rama”. Não há alarme – sua trajetória passará longe da Terra – e é quase por acaso que um astrônomo consegue que uma sonda altere sua trajetória para fotografá-lo de perto e descobrir que se trata de um cilindro perfeito e oco de cinquenta quilômetros de comprimento e 16 de diâmetro, obviamente construído por alguma civilização alienígena. Para investigá-lo em detalhe, uma das naves que monitoravam asteroides, a Endeavour, é desviada de improviso para ir ao seu encontro, de modo que seus astronautas possam explorá-lo.
A história começa então a soar datada. O sistema “Spaceguard” de 2130 rastreia o número “impressionante” de meio milhão de asteroides, armazenando as informações em suas “imensas memórias”. Pois esse foi o número de asteroides descobertos na vida real de 1980 a 2010 (cujos dados podem ser facilmente conferidos na internet por qualquer astrônomo amador) e sabe-se que é apenas o começo. O número de satélites que Clarke atribui ficcionalmente a Júpiter (50 e tantos), Saturno (30 e tantos), Urano (8), Netuno (4) e Plutão (1), embora bem além do que era conhecido em seu tempo, também são menos do que os hoje conhecidos – respectivamente, 64, 62, 27, 13 e 4, contando apenas aqueles com órbitas confirmadas até julho de 2011.
O paradoxo é que, se em menos de quatro décadas, avançamos mais em conhecimento do Sistema Solar do que Clarke esperava para 160 anos, os voos espaciais tripulados estagnaram quase completamente nesse período. No romance 2001, Uma Odisseia no Espaço, Clarke descrevia voos comerciais regulares da Terra à Lua (no filme, pela PanAm) e astronautas dirigindo-se a uma lua de Saturno (Júpiter na versão cinematográfica). Na realidade de 2011, a PanAm faliu há décadas, a NASA encerrou seu programa de voos tripulados e paga passagens nas Soyuz russas (um modelo de 1967) para que os astronautas dos EUA cumpram seus turnos na Estação Espacial Internacional. E até o novo diretor da agência espacial russa, Vladimir Popovkin, acha que os cosmonautas e a Estação são um desperdício de verbas que dariam mais retorno se aplicadas em satélites GPS e meteorológicos.
A informática e a automação avançaram muito mais rápido do que Clarke conseguiu imaginar nos anos 60 e 70, deixando os astronautas quase obsoletos. Quando seus heróis desembarcam em Rama, tentam explorar a cápsula de cinquenta quilômetros aparentemente vazia e às escuras, à custa de enormes esforços físicos. Só a distância da entrada do cilindro às suas paredes internas é uma escalada de oito quilômetros, tão grande quanto a do Everest e, dados os obstáculos (inclusive um mar venenoso que divide o cilindro em dois) e o tempo limitado de que dispõem antes que Rama deixe o Sistema Solar, não têm como fazer uma exploração completa.
Um leitor de 2011 dificilmente deixará de se perguntar: ué, e por que não usar uma sonda, um robô, um drone (avião sem piloto, teleguiado)? Tudo isso é hoje quase rotina, mas não ocorreu a Clarke e seus leitores originais. Certo, uma nave dedicada a monitorar asteroides, que não teve tempo de se preparar, talvez não tivesse por que carregar equipamentos como esses. Mas muito menos teria razões para carregar os holofotes, os apetrechos de montanhismo e acampamento e o material para construção de uma jangada que vêm a ser usados nessa missão (para não falar de uma bicicleta voadora).
A primeira metade do livro soa um tanto monótona – a exploração de uma catacumba escura e vazia acompanhada de lições de física e astronomia, com alguns relances da vida e política no século 22 enquanto exploradores e os cientistas que ficaram nas bases da Terra e da Lua trocam dados e análises.
Mas vale notar que Clarke não compartilhou a ingenuidade comum a muitos autores de ficção científica de seu tempo que imaginavam que os costumes e valores de sua década durariam para sempre: fora amantes de ocasião, o capitão da nave tem duas esposas que se dão bem, uma na Terra e outra em Marte. Para poupar tempo e ser imparcial, envia a ambas as mesmas mensagens “pessoais” gravadas, com ligeiras edições. Detalhe curioso é que ele não se preocupa com que elas troquem informações e descubram o truque, porque o custo de transmissão de Terra a Marte é alto. Comunicações tão fáceis e baratas quanto a internet de hoje estavam também fora de cogitação, mesmo na ficção científica. Por outro lado, não deixou de presumir que quase todas as pessoas com cargos importantes no Sistema Solar seriam homens com sobrenomes anglo-saxões (ainda que o capitão, nascido na Austrália, tenha um middle name chinês), alguns dos quais seriam sirs britânicos. Que diria de um Barack Hussein Obama como presidente dos EUA em 2008?
Na segunda metade do livro, ao se aproximar do Sol, Rama acorda de surpresa, suas máquinas voltam à vida e as coisas se tornam mais interessantes. Mas os “biômatos” da civilização ramana, robôs feitos de células biológicas construídas a partir dos materiais do mar venenoso, são no fundo conceitos bem simples e perdem boa parte do impacto e do mistério nesta época acostumada com robôs de verdade e especulações mais ousadas (como, por exemplo, os nanitas ou nanorrobôs do tamanho de células ou vírus que se tornaram lugar-comum na ficção científica desde os anos 80). Uma tentativa do paranoico governo de Mercúrio de atacar Rama também não chega a convencer como ameaça ou suspense. O valor do livro está no seu poder de representar metaforicamente o fascínio da exploração e descoberta científica e o espanto ante os mistérios do Universo – quem não for capaz de se emocionar com isso, dificilmente saberá apreciá-lo.

Antonio Luiz M. C. Costa

Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica.