“Atira”. Tenório, no fim, resolveu não atirar. As armas da crítica e a crítica das armas
Por Ubiracy de Souza Braga, sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
O caudilho é o líder de um grupo que exerce o seu poder de maneira autoritária, e as relações pessoais do líder com seus adeptos é estreita e emocional. Em geral, tem origens entre representantes das elites tradicionais, como fazendeiros e militares. É comum entre os caudilhos a tendência a se perpetuar no poder, seja por consecutivas reeleições ou por mandato vitalício. Seu carisma, embora nem sempre transferível em caso de sua morte, pode ser estendido para parentes, como esposa e filhos como ocorreu com Papa Doc e seu filho Baby Doc no Haiti e Perón e suas esposas Evita e Isabelita na Argentina. O caudilho pode exercer o poder em todo um país ou apenas numa região ou província assemelhando-se ao coronelismo, no caso brasileiro. Fora do contexto latino-americano, houve também caudilhos na África, como Idi Amin e na Europa, como o Almirante Horthy. O General Francisco Franco, ditador da Espanha entre 1939 e 1975, era tratado oficialmente como caudilho.
Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque (1906-1987) foi um político brasileiro com base eleitoral no estado do Rio de Janeiro. Tenório na política possuía um estilo político agressivo, muitas vezes violento. Isso lhe rendeu uma aura de mito. Eleito deputado estadual e deputado federal do Rio de Janeiro, tendo quase vencido também para governador do estado, sua vida inspirou o filme “O Homem da Capa Preta”, dirigido em 1986 por Sérgio Rezende e estrelado por José Wilker no papel de Tenório Cavalcanti (cf. Alves, 2003).
Nascido em Alagoas, mudou-se já adulto para Duque de Caxias no fim dos anos 1920. Sua infância fora humilde, na maior parte passada no sertão nordestino. Na época de sua chegada ao Rio de Janeiro, Duque de Caxias era apenas um gueto cruzado por ruas de terra batida. Habitado na maior parte por migrantes nordestinos, a região era desprovida de qualquer infraestrutura ou saneamento básico, sendo apenas “uma enorme favela horizontal de loteamentos pantanosos, infestados de mosquitos”. Seria naquele gueto, a Baixada Fluminense, que Cavalcanti garantiria seu poder político como caudilho. Como deputado estadual, o “homem da capa preta” providenciou diversas melhorias para a população local, buscando também instalar as dezenas de milhares de migrantes nordestinos que vinham diariamente para o Rio de Janeiro em busca de condições melhores de vida. Suas obras políticas renderam-lhe muitos aliados e eleitores pelas favelas de Caxias, apoio este que o levaria a ser eleito deputado federal.
Pelos cabos eleitorais, Tenório Cavalcanti fora conhecido como “O Rei da Baixada”; pelos rivais, era tachado de “O Deputado Pistoleiro”. Devido aos constantes riscos de morte, Tenório e sua família habitavam uma fortaleza ipsis litteris na Baixada Fluminense. No entanto, “jamais se recusava em caminhar pelas ruas do gueto, andando sempre armado e acompanhado de capangas”. As aspirações e os planos políticos de Tenório Cavalcanti chocavam-se violentamente com o das elites políticas de Duque de Caxias. Isso lhe rendeu diversos desafetos, muitos dos quais culminaram em atentados à vida dele e à de seus familiares e aliados. Em casos como este Tenório Cavalcanti mandava matar quem o desafiasse. Um destes fora o delegado paulista Albino Imparato, convocado às pressas pela elite de Caxias para que freasse o populismo e a agressividade do homem da capa preta. Com a chegada de Albino, Cavalcanti e seus aliados foram perseguidos de forma implacável. Sua casa fora metralhada, seus familiares ameaçados e alguns de seus comparsas assassinados.
Até que, no dia 28 de agosto de 1953, o delegado Imparato fora encontrado metralhado dentro de seu carro, no Centro da cidade. O crime despertou a atenção nacional. As investigações comprovaram a participação direta de Cavalcanti no crime. As duas residências do homem da capa preta – a fortaleza de Caxias e o apartamento de Copacabana – foram cercadas por policiais fortemente armados. Com a intervenção de alguns nomes políticos de peso da época, o cerco fora desfeito. Intervieram Nereu Ramos, presidente da Câmara, Osvaldo Aranha, ex-ministro da Fazenda, e Afonso Arinos, então deputado e futuro senador, que foram a Duque de Caxias especialmente para defender o aliado. A título de curiosidade, Tenório Cavalcanti andava sempre ao lado de sua “Lurdinha”, uma submetralhadora MP- 40 de fabricação alemã, similar àquelas utilizadas por soldados nazistas durante a segunda guerra mundial. Esta arma foi um presente do general Góis Monteiro.
Este, com Antônio Carlos Peixoto de Magalhães (1927-2007), doravante ACM, seu logotipo político, protagonizaria um dos episódios mais tensos da história política contemporânea brasileira. Na ocasião, Tenório Cavalcanti, ainda no mandato de deputado federal, discursava na Câmara dos Deputados. No discurso, acusava o então presidente do Banco do Brasil, Clemente Mariani, de desvio de verbas. Antônio Carlos Magalhães, então deputado e baiano como Mariani, defendera o conterrâneo respondendo que “vossa excelência pode dizer isso e mais coisas, mas na verdade o que vossa excelência é mesmo é um protetor do jogo e do lenocínio, porque é um ladrão”. Tenório Cavalcanti, então, sacou o seu revólver e berrou: “Vai morrer agora mesmo!”. Todos os membros da Câmara Federal correram para tentar impedir o assassinato. Segurando o microfone, Antônio Carlos Magalhães não se deu por vencido, mas tremendo gritou: “Atira!”. Tenório, no fim, resolveu não atirar. O deputado Tenório Cavalcanti teve suas armas apreendidas e seus direitos políticos cassados pelo governo militar em 1964 com a interveniência direta de Antônio Carlos Magalhães.
Após a reformulação partidária filiou-se ao PDS em fevereiro de 1980 mantendo incólume sua condição de líder político apesar do duro golpe sofrido às vésperas das eleições de 1982 quando um acidente aéreo vitimou Clériston Andrade, candidato situacionista ao governo da Bahia. Refeito da tragédia, ACM indicou João Durval Carneiro como candidato a governador, opção afinal vitoriosa. Entusiasta da candidatura de Mário Andreazza à sucessão do general-presidente João Figueiredo, opôs-se firmemente ao nome de Paulo Maluf como candidato após sua vitória sobre Andreazza na convenção nacional do PDS realizada em 11 de agosto de 1984 pela contagem de 493 votos a 350. Episódio singular de sua postura antimalufista aconteceu três semanas após a convenção pedessista quando, na inauguração do novo terminal de passageiros do aeroporto de Salvador, o Ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, criticou a postura dos dissidentes do PDS em favor da candidatura de Tancredo Neves no que ACM respondeu: “Trair a Revolução de 1964 é apoiar Maluf para presidente”.
Aliado de Fernando Collor até a última hora teve uma influência política reduzida durante o governo Itamar Franco (cf. Braga, 2011), mas reverteu tal situação ao se posicionar como “um dos artífices da aliança entre o PSDB e o PFL que elegeu o senador Fernando Henrique Cardoso presidente da República em 1994, mesmo ano em que Antônio Carlos Magalhães foi eleito senador pela Bahia e Paulo Souto governador do estado”. Embora aliado importante do Governo Federal, seu filho, Luís Eduardo Magalhães, presidiu a Câmara dos Deputados entre 1995/1997, quando ACM se opôs com firmeza à liquidação do Banco Econômico expondo assim sua face de “Toninho Malvadeza”, epíteto usado por adversários políticos que qualificavam sua ação política como “truculenta”. Já seus acólitos preferiam identificá-lo como “Toninho Ternura”.
Em 1996 seus aliados venceram as eleições para a Prefeitura de Salvador pela primeira vez na história com a candidatura de Antônio Imbassahy, que seria reeleito no ano 2000 na mais evidente prova de que o “carlismo” era a maior força política da Bahia. Eleito presidente do Senado Federal para o biênio 1997/1999 sofreu um duríssimo golpe com a morte de seu filho Luís Eduardo em 21 de abril de 1998, mesmo assim colheu importantes vitórias àquele mesmo ano com a reeleição de FHC para a Presidência da República e a de César Borges para o governo da Bahia. Foi reeleito presidente do Senado Federal para o biênio 1999/2001, tendo antes ocupado a Presidência da República entre 16 e 24 de maio de 1998 em razão de uma viagem do titular ao exterior, visto que tanto o vice-presidente Marco Maciel, quanto o presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, estavam impedidos de assumir o cargo durante o período eleitoral sob pena de inelegibilidade.
A partir de abril do ano 2000 protagonizou uma série de ofensas e troca de acusações com o senador paraense Jader Barbalho, contenda que tinha como background a sucessão de ACM na presidência do Senado Federal. À medida que era criticado por seu contendor, Antônio Carlos respondia elevando cada vez mais o tom das críticas, fato que recrudesceu às vésperas da eleição para a mesa diretora do Senado em 14 de fevereiro de 2001 quando Jader Barbalho, enfim, derrotou o senador Arlindo Porto (PTB-MG) e foi alçado à presidência da casa. Ao longo de seus embates com Jader Barbalho (que recebera o apoio do PSDB para se eleger), ACM desfere críticas ao Governo Federal, a quem acusa de conivência com a corrupção, postura que leva à demissão os ministros Waldeck Ornélas (Previdência Social) e Rodolpho Tourinho (Minas e Energia), ambos indicados por ele, o que enfraqueceu sua posição nas hostes situacionistas. Dias depois surge a informação de que Antônio Carlos Magalhães tivera acesso a uma lista de votação onde constava o voto de cada um dos senadores que participaram da sessão que cassou o mandato do senador Luiz Estevão (PMDB-DF), acusado de envolvimento na obra superfaturada da sede do TRT/SP. A referida lista teria sido apresentada a ACM pelo senador José Roberto Arruda (PSDB-DF), então líder do governo.
Alvos de um pedido de quebra de decoro parlamentar após uma investigação conduzida pelo Conselho de Ética do Senado, os dois parlamentares negaram envolvimento no caso, porém a confissão de Regina Borges, então diretora da Empresa de Processamento de Dados do Senado, de que a lista foi entregue por ela a Arruda a pedido do próprio senador e depois mostrada por este último a ACM tornou insustentável a posição dos dois que, sem saída, apresentaram seus pedidos de renúncia para evitar a cassação de seus mandatos e a consequente perda dos direitos políticos e assim Arruda renunciou em 24 de maio de 2001 e Antônio Carlos Magalhães no dia 30 de maio. Em lugar de ACM foi empossado seu filho, o empresário Antônio Carlos Magalhães Júnior. De volta a Bahia acompanhou os eventos que levariam Jader Barbalho a renunciar ao mandato de senador e nas eleições de 2002 colheu as últimas vitórias de seu esquema político com a volta de Paulo Souto ao governo e a conquista de mais um mandato de senador.
Enfim, de volta ao Senado fora empossado em 1º de fevereiro de 2003 logo ACM interrompeu a “trégua política” concedida a Luiz Inácio Lula da Silva e passou a fazer uma oposição veemente ao governo e aos aliados deste, todavia o definhar de sua até então inabalável e incontestável liderança tomou forma em 2004 quando o oposicionista João Henrique Carneiro (PDT) foi eleito prefeito de Salvador em segundo turno ao derrotar o “carlista” César Borges e no ano seguinte foi a vez de Antônio Imbassahy deixar o PFL e se abrigar nos quadros políticos do PSDB. Em 2006 seus candidatos a governador (Paulo Souto) e a senador (Rodolpho Tourinho) não foram reeleitos sendo derrotado respectivamente por Jaques Wagner (PT) e João Durval Carneiro (PDT), este último pai do prefeito de Salvador. Embora seu filho Antônio Carlos Magalhães Júnior tenha pendores políticos, a continuidade de sua vida política do clã parece uma tarefa que cabe a seu neto Antônio Carlos Magalhães Neto, eleito deputado federal em 2002, 2006 e 2010. De te fabula narratur!
Bibliografia geral consultada.
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