No outono da existência, poderes decadentes recorrem à guerra

É proibido bombardear, por quaisquer meios, cidades, vilas, abrigos ou prédios não defendidos” (1907, IV Convenção de Haia).
Há nos atlas um novo continente: a Drone-lândia. As fronteiras da Drone-lândia vão da Líbia à Somália, Iêmen, Afeganistão, Paquistão. Os aviões-robôs tripulados a distância modelos Reaper e  Predator cruzam o ar, comandados por jovens instalados no conforto de bases muito distantes da guerra. Colar que orna o poder dos EUA, essas bases envolvem todo o mundo num silencioso abraço. A New America Foundation estima que só nos ataques por aviões-robôs drones tripulados a distância, já morreram entre 1.600 e 2.500 civis, em números redondos, desde 2004.
Ano passado, o investigador da ONU para eventos ilegais com vítimas fatais, Philip Alston, observou que, para muitos especialistas, os ataques com aviões-robôs tripulados a distância são ilegais. A organização Reprieve, baseada na Grã-Bretanha, trabalha para obter mandado internacional de prisão contra John Rizzo, conselheiro geral da CIA, o qual disse em fevereiro à revista Newsweek que aprovara, no mínimo, um ataque por aviões-robôs por mês [1]. Será um pequeno terremoto na Drone-lândia, se o processo não for engavetado em algum canto dos escritórios sombrios da Scotland Yard.
Em 1922, o governador das Províncias do Noroeste do Império Britânico [orig. British Empire’s Northwest Provinces] (aproximadamente o que hoje se conhece como Paquistão e o sul do Afeganistão), Sir John Maffrey pensou em voz alta sobre os bombardeios contra civis: “Quais são as regras desse tipo de críquete?”
Seus superiores em Delhi responderam que a lei internacional não se aplicava “no caso de tribos selvagens que não se pautam pelos códigos da guerra civilizada”. Não seria prudente alertar selvagens e, em todos os casos, melhor usar sempre força máxima. A ferocidade quebraria a moral dos selvagens. E nenhuma cordialidade com as mulheres, Mulheres afegãs, diziam os quartéis-generais imperiais, são tratadas “como propriedade, alguma coisa entre um rifle e uma vaca”.
Oficial do Comando dos Serviços Aéreos na Índia, Philip Game escreveu noutro despacho: “Espero que, em pouco tempo, se usarmos a força aérea com sabedoria e humanidade, acabarão os protestos atuais e a força aérea passará a ser vista como arma normal e adequada para impor as justas exigências de nosso governo” (18/10/1923). A esperança de Games realmente se concretizou. Exceto os advogados do grupo Reprieve e as famílias dos assassinados em ataques de aviões-robôs drones tripulados a distância, poucos se horrorizam com a criação da Drone-lândia.
O Projeto Prioridades Nacionais [orig. National Priorities Project, NPP, http://nationalpriorities.org/), em Northampton, Massachusetts, informa que o governo dos EUA já gastou com a guerra 7,6 trilhões de dólares, desde 11/9. O NPP tem a decência de somar o orçamento-base do Pentágono, o orçamento nuclear, o orçamento da Segurança Nacional e o custo das guerras do Iraque e do Afeganistão (só as duas custaram 1,26 trilhões de dólares). É número espantoso.
Essa foi a opinião da antes sempre indecisa e acovardada Conferência dos Prefeitos dos EUA [orig. U. S. Conference of Mayors em http://www.usmayors.org/].
Dessa vez, os prefeitos adotaram a linguagem dos ativistas, falando dos “dólares de guerra”, e exigiram que o Congresso dos EUA “traga de volta para os EUA esses dólares de guerra, onde são necessários para atender necessidades humanas vitais, criar empregos, reconstruir nossa infraestrutura, ajudar governos municipais e estaduais, e desenvolver uma nova economia baseada em energia renovável e sustentável”. O argumento econômico usado a favor do fim das guerras já penetrou a fortaleza dos discursos dominantes. Quem criticou os “dólares de guerra” foi o prefeito de Los Angeles, Antonio Villaraigosa, presidente da Conferência dos Prefeitos, que de modo algum poderia ser descrito como progressista.
Mas os prefeitos não protestaram contra a Drone-lândia nem falaram dos bombardeios aéreos contra populações civis. Tampouco disseram coisa alguma sobre a lei internacional e sua subserviência aos interesses da “comunidade internacional” – sinônimo de “estados reunidos no G-7”.
Silenciosas por tempo já longo demais, as legiões antiguerra estão começando a reagrupar-se. Ao longo dos anos Bush (só oito, mas pareceram eternos!), foi fácil para os liberais englobar os radicais: Bush era como um ímã de todas as críticas. Era fácil desprezar Bush. As manifestações antiguerra sempre foram consideráveis (dia 15/2/2003, um milhão de norte-americanos participaram de manifestações em todo o país). Mas o movimento era instável.
Parte do movimento opunha-se ao militarismo, quando não, diretamente, ao imperialismo. Nessa ala reuniam-se todos os partidos do centro à esquerda, as organizações pró-paz e, também, muitos religiosos fundamentalistas Quakers, Bruderhofs, além de muitos budistas.
Outra parte do movimento não se opunha a todas as guerras, mas só às guerras irracionais, nas palavras do então senador Barack Obama em 2002: “guerras burras, mal pensadas, irracionais”, quer dizer: eles só eram contra uma guerra: a guerra do Iraque. Para essa ala do movimento, a Guerra do Iraque seria uma “distração”; queriam que o presidente Bush dedicasse integral atenção só à Guerra contra o Terror e contra ao Afeganistão.
O único traço que aproximava essas duas alas do movimento antiguerra nos EUA durante os anos Bush foi a antipatia contra Bush e contra a Guerra do Iraque. Dessa energia produziu-se a onda de fevereiro de 2003.
Com a eleição de Obama, desapareceu a base (Bush) da unidade do movimento antiguerra. Os liberais investiram todas as suas esperanças em Obama e, apesar das duras decepções pelas quais têm passado, continuam a crer firmemente que o governo Obama está tentando, contra todas as dificuldades (Republicanos), focar toda a sua atenção bélica no Afeganistão e, afinal, sair do Iraque. A morte de Bin Laden, aos olhos dessa parte do movimento, seria prova definitiva de que Obama é o melhor burocrata pró-guerra não-burras, não-irracionais, com que os liberais poderiam sonhar.
É pouco provável que a ala liberal do movimento contra a guerra do Iraque volte a reunir-se para protestar contra Obama que, agora, parece estar completamente focado, dedicado empenhadamente em expandir a guerra por toda a Drone-lândia.
Essa parece ser a explicação para o grande silêncio do movimento antiguerra nos EUA ao longo dos últimos anos, justamente quando os EUA mais expandiram suas guerras – , só para descobrir que, na Primavera Árabe, estavam do lado errado do jogo (tentando boicotar a revolução egípcia; tentando e conseguindo reprimir o levante no Bahrain; e empurrando a luta líbia cada dia mais na direção de mais uma guerra). Os grupos que tanto falaram contra a guerra do Iraque, agora, se mantiveram em silêncio.
Mas frações daquela coalizão anterior continuam a fazer-se ouvir. Os EUA seríamos nação cúmplice, não fosse a magnífica militância das Code Pink[2], seja nas audiências esvaziadas no Congresso ou pelas ruas das cidades nos EUA; e o recém criado Comitê Nacional Unido Antiguerra [ing. United National Anti-War Committee (UNAC) [3]].
[Imagem em http://www.newsds.org/2011/4/13/april-9th-2011-unac-anti-war-protest-nyc]
Em julho de 2010, cerca de 800 ativistas de 12 diferentes organizações reuniram-se em Albany, New York, para inaugurar o UNAC e divulgar um manifesto guarda-chuva contra tudo que veem de ruim nas políticas militaristas (do desperdício de dinheiro público, à prisão de Bradley Manning).
Dia 19/4/2011, o UNAC coordenou grande manifestação em New York, contra o estado militarista e em defesa dos muçulmanos. O movimento antiguerra nos EUA parece estar saindo da hibernação.
O UNAC já anunciou que passa a trabalhar agora em torno de dois princípios intrinsecamente relacionados: anti-imperialismo e anti-islamofobia.
Anti-imperialismo: A guerra e os dólares da guerra, nos EUA não são eventos irracionais, acidentais, como a Conferência dos Prefeitos sugeriu. A base industrial arrasada e um setor financeiro elefantino destroem a possibilidade de criarem-se empregos e de oferecer assistência social aos mais pobres. Essa combinação de poder financeiro e declínio da indústria é sinal de que o tempo de poder de uma civilização aproxima-se do fim. É “sinal de outono”, como escreveu o historiador Ferdinand Braudel [4]. São sinais que já se viram antes em Gênova, na Holanda e no Reino Unido (como Giovanni Arrighi documenta em O longo século XX [5]).
Quando apareceram claramente os sinais de que o outono do Reino Unido batia à porta, em torno de 1925, Winston Churchill proclamou: “Prefiro finanças menos orgulhosas e indústria mais satisfeita”.  Poucos meses depois dessa declaração, os EUA ultrapassaram o Reino Unido como economia maior e mais importante do mundo.
Agora, o FMI acaba de declarar que a China ultrapassará os EUA, à altura de 2016. Braudel e Arrighi argumentam que, no tempo do outono, as potências declinantes recorrem à força, tentando evitar o inevitável. Além dessa possibilidade cíclica, os EUA desenvolveram economia distorcida, com a indústria da guerra no centro do desenvolvimento industrial e contando com o poder militar para assegurar a primazia do dólar. A guerra é fator decisivamente importante nos sonhos absurdos do “Século Norte-americano”.
Movimento antiguerra, hoje, terá de ver esse processo e argumentar por muito mais do que o fim de uma ou outra guerra. A tarefa histórica do movimento antiguerra, hoje, é confrontar a base das guerras dos EUA, a própria economia da guerra imperialista que ameaça todo o planeta dos muitos, para preservar a riqueza e a vaidade dos poucos.
Anti-islamofobia: Na manifestação do dia 9/4 em New York, líderes da Coalizão de Muçulmanos pela Paz e dos 100 Imãs pela Paz trouxeram curta e eficaz mensagem ainti-imperialista e lembraram que as guerras dos aviões-robôs na Drone-lândia havia feito aumentar os ataques contra muçulmanos e contra que ‘pareça’ muçulmano nos EUA.
O Imã Abdul Malik Mujahid (de Chicago) espera ainda ver “EUA que não bombardeiem os mais pobres dos pobres, a serviço dos mais ricos dos ricos”. Para o Imã de Chicago, guerra, terrorismo e islamofobia são “um mal só, de três caras”.
Novo estudo do Center for Human Rights e de Global Justice demonstra que o governo dos EUA usou sistematicamente informantes pagos e não treinados para semear o medo entre os muçulmanos que vivem nos EUA (Targeted and Entrapped: Manufacturing the ‘Homegrown Threat’ in the United States, 2011 [No alvo e na armadilha: fabricando a ‘Ameaça Interna’], em http://www.chrgj.org/projects/docs/targetedandentrapped.pdf ).
Preparando-se para tempos de ativa islamofobia, no 10º aniversário do 11/9, os cidadãos de Teaneck, NJ., aprovaram lei municipal antipreconceito, como parte da campanha “An America for All of US” [América para Todos Nós] organizada pelo grupo Líderes Americanos-sul-asiáticos Unidos [South Asian Americans Leading Together, SAALT]. Outras cidades ecoarão essa experiência.
Deve-se dizer a crédito do UNAC que o movimento não prevê que a luta contra a islamofobia venha a dividir o movimento nem que seja menos importante que a luta contra a guerra que, para alguns, seria a principal questão. Como disse o Imã Mujahid, os EUA temos de nos unir “contra a guerra em casa e longe de casa”.
Estamos às vésperas de eleições. Os progressistas ouvirão muitas vezes aquela velha pergunta: você apoiará Obama para não dividir a “esquerda”, ou votará a favor de algum partido pequeno e, assim, entregará a eleição à “direita”? Essa pergunta nada esclarece. É perda de tempo.
A “direita” é partido de doidos. E a postura ‘antiguerra’ de Obama é menos ridícula que os delírios demagógicos de Mitt Romney. Mas eleições dividem. Agora, não temos de pensar em eleições nem podemos desperdiçar nisso nossas energias.
O campo da luta antiguerra tem de cuidar, só, de fortalecer nossa organização para acumular forças para fazer frente contra grupamentos políticos que, Republicanos e Democratas, hoje, são ambos quase integralmente devotados à guerra. Nada justifica desperdiçar energia nesse debate desgastado.
O melhor que temos a fazer é mobilizar nosso tempo e nossos recursos e construir uma frente ampla, como a UNAC, que consiga mais unir que dividir. Só assim conseguiremos fazer frente a políticos profissionais incapazes de ler as entrelinhas que, por todos os lados nos EUA gritam que o “Século Americano” está acabado.