OPINIÃO | LULA MOSTROU SER CAPAZ DE PÔR MEDO EM BOLSONARO E MORO Ao ocupar o posto vago de voz da oposição


Ao ocupar o posto vago de voz da oposição e devolver a política às ruas, ex-presidente dá as cartas num jogo que os adversários não dominam
Luiz Fernando Vianna
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em São Bernardo do Campo Foto: Pedro Vilela / Getty Images

Há os que amam Luiz Inácio Lula da Silva e os que o odeiam. Difícil é ignorá-lo. Sergio Moro, chamado de “canalha” e “mentiroso” no discurso que o ex-presidente fez no sábado 9, em São Bernardo do Campo (SP), foi ao Twitter dizer que “algumas pessoas só merecem ser ignoradas”. Se ele pensa isso, deveria ter ficado quieto.

Moro prendeu Lula. Moro soltou Lula. É incrível a dedicação dos militantes que passaram 580 dias fazendo vigília diante da sede da Polícia Federal, em Curitiba. E é admirável a perseverança dos que apostaram no mote “Lula livre”. Mas não foi por causa deles que o ex-presidente ganhou a liberdade na sexta 8.

Ao aceitar ser ministro da Justiça do principal favorecido pela prisão de Lula, Moro rasgou a fantasia de herói impoluto. Ele pode ainda ser popular, mas sua, digamos, “força moral” se desintegrou.

Com as revelações iniciadas pelo site The Intercept, ficou provado o que não era difícil perceber: juiz e procuradores agiram à margem das leis para levar à cadeia aquele que ocupava o centro do Power Point tosco de Deltan Dellagnol. Tratou-se de uma caçada – o freguês pode considerá-la legítima, mas ficou difícil considerá-la legal.

Ao mudar novamente a jurisprudência (por apenas seis votos a cinco) sobre quando se inicia a execução das penas e, assim, permitir a soltura do líder petista, o Supremo Tribunal Federal indicou que não se sente mais tão acuado pela popularidade do ex-juiz e da Lava-Jato. Até o momento, o cabo e o soldado imaginados por Eduardo Bolsonaro ainda não saíram do quartel para fechar o STF. A democracia continua funcionando.

Os últimos dias têm sido da caça, não do caçador. O discurso de São Bernardo mostrou que a volta de Lula à cena não pode ser menosprezada por Jair Bolsonaro e Moro. Pode mesmo ser temida.

Lula devolve à esquerda uma voz. Em primeiro lugar, literalmente. Não há ninguém no Brasil que tenha oratória tão poderosa. Não significa que ele seja um devoto da verdade. Há uma carrada de imprecisões, distorções e contradições em sua fala no sábado. Mas ele desperta paixões – a favor e contra – e faz a roda da política girar.

De janeiro para cá, o Twitter se tornou a arena nacional. É com poucas e, frequentemente, grosseiras palavras (“vermes”, “porcos”, “lixos”) que os filhos de Jair Bolsonaro lideram o exército virtual que dá suporte ao governo. Com Lula nas ruas (também literalmente), parte da ação sai da tela e vai para a praça. Este é o terreno em que o ex-presidente se move melhor – embora também seja um pragmático capaz de se aliar a Paulo Maluf e ao Centrão. O atual mandatário e seus aliados civis e militares não têm as mesmas habilidades.

A escolha de Paulo Guedes como alvo de ataques é estratégica: fala direto ao bolso da população e chama para briga um ministro sem traquejo político.

Ciro Gomes (PDT) pode falar barbaridades – e ele é bom nisso – que nada acontece. Partidos como PSB e PCdoB não têm líderes fortes. Marina Silva (Rede) podia ser uma, mas deixou o bonde passar. Em dois dias, Lula já dominou esse espaço que estava desocupado havia muito tempo.

Tateando em meio a incertezas, é inevitável que a imprensa crie seus clichês. Um deles diz que o antipetismo reforçará o bolsonarismo. Falta dizer que também pode acontecer o contrário: a esquerda órfã se entregar a Lula e ganhar vitalidade no combate a Bolsonaro.

Complemento do anterior é o clichê da “polarização”. Não custa ressaltar que é estreito o espaço de moderação quando do outro lado está a extrema direita. Como contemporizar se os adversários defendem a liberação de armas, idolatram torturadores e falam em volta do AI-5 e fechamento de instituições?

Talvez Lula venha a fazer algo em já que foi mestre: gritar no palanque, mas amaciar nos bastidores, deixando canais abertos para quem quiser largar o barco do bolsonarismo. Sempre há o risco de a sagacidade virar falsidade, veneno que contribuiu para a derrocada do PT.

Os momentos mais fortes em São Bernardo foram quando se falou em Marielle Franco e milícias. Há partidos e forças ditas progressistas que continuam não dando a devida importância à morte e à memória da vereadora. Agem de forma protocolar, como se fosse um problema de certos segmentos da sociedade e do PSOL, partido dela, e não da civilização contra a barbárie.

Lula pegou o caso e pôs no colo. Antes de tudo, é o certo a se fazer. Depois, é uma bandeira vigorosa, com grande capacidade de comoção e mobilização.

Pode não haver qualquer relação entre Bolsonaro e o assassinato de Marielle, em 14 de março de 2018. Mas o fato de os dois acusados terem saído de uma casa vizinha à do presidente para executar a vereadora é de um simbolismo terrível.

Analistas que acompanham os movimentos nas redes sociais têm apontado que o apoio a Bolsonaro cai muito quando está no noticiário a proximidade de sua família com as milícias. Com poder crescente no Rio, os milicianos matam por encomenda, matam de graça, achacam trabalhadores, ganham dinheiro construindo prédios que caem e ainda traficam drogas, pois se aliaram a uma das facções que atuam no Estado.

Lula acredita que o edifício do bolsonarismo possa ruir se surgirem mais informações sobre os elos que ligam a atual família presidencial a milicianos. Por isso, no palanque, perguntou sobre Fabrício Queiroz, o ex-policial que sabe o que os Bolsonaro fizeram nos verões passados.

Se Lula foi ou não um bom presidente, depende de quem avalia. Mas não há papel que ele desempenhe melhor do que esse que acaba de reassumir: líder da oposição.

Texto de Luiz Fernando Vianna publicado no site da revista  Época.