A viagem ideológica

por Rosane Pavam — em Carta Capital
A ensaísta argentina Beatriz Sarlo advoga o turismo iluminista, que mescla o conhecimento à experiência 

Sarlo a caminho das minas de Oruro, em 1971

Beatriz Sarlo havia grudado o mapa de Viena na cabeça antes de conhecer a Áustria. Eis por que, se lhe pedissem, seria capaz de desenhar sobre um guardanapo as ruas em torno da Michaelerplatz. Ler era tão importante quanto viver, e o ensaio Viena fin-de-siècle: Política e cultura, de Carl Schorske, havia lhe dado as pistas para todos os monumentos de um sonho de liberdade. As estações de metrô, os prédios de apartamentos, os bancos e os pavilhões desenhados em dura geometria pelo arquiteto Otto Wagner a arrebatavam.

Haveria um lugar especial para sua Catedral de São Leopoldo, a oscilar entre o ocre e o púrpura, quando finalmente conhecesse a cidade. Foi o que ela fez em 1995. Dentro do monumento de religiosidade, em um fim de tarde de outubro, subiu e desceu escadas. Mas não se deu conta de que o horário de fechamento se aproximava, tanto quanto um homem de avental e touca azuis, a lhe tocar o ombro por trás.
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A maior ensaísta e intelectual argentina da atualidade, a mesma que em 1978 fundara a revista Punto de Vista e por meio de suas questões culturais, sob pseudônimo, driblara a censura ditatorial, esquecera-se de que São Leopoldo pertencia a um hospital psiquiátrico. O homem de azul, portanto, era um interno, um excluído que desejava se aproximar.

Tão logo o desconhecido se aproximou, contudo, Sarlo correu na direção das grades e ganhou a rua, à maneira do que fez o interno em direção oposta. Isto reafirmou, nela, uma crença importante. O imprevisto se impunha. A viagem era o que não se podia explicar. Senão, como interpretar aquela breve e intensa experiência física capaz de suplantar a beleza dos vitrais de Kolo Moser? Por muitos anos, a professora havia sido uma falsa especialista em Viena, ela não compreendera nada.

Aos 73 anos, Beatriz Sarlo ainda exalta esse momento como seu enigma de uma vida inteira. E, impulsionada por ele, reinventa a juventude de seus fantasmas do passado. A narrativa vienense é o preâmbulo a seu Viagens – Da Amazônia às Malvinas um livro (em formato e-book) escrito com falsa simplicidade em torno da identidade latino-americana, esta que ela investigou a partir da década de 1960 em viagens anuais de dois meses, nas quais enfrentou os altiplanos ou o Planalto Central do Brasil.

Tudo o que viveu, o decorrer do tempo ampliou. “Não poderia argumentar que esses relatos são testemunhos neutros”, escreveu. “Não se trata simplesmente de recordações, mas de formas nas quais a experiência me modificou a cada momento.”

Sarlo conta que se decidiu por este livro depois de receber um “encargo” de dois amigos. O primeiro deles, arquiteto, fora um de seus tantos companheiros nessas viagens de juventude, ansioso por retraçá-las. Ela nunca estivera só por esses caminhos e, segundo sua argumentação, formara com os colegas um grande coletivo, razão pela qual, posteriormente, não daria seus nomes no livro, incomodada em assumir sua perspectiva, em “falar pelos mortos”.

O amigo lhe mandara, oito anos atrás, cerca de 150 fotografias daquele período, e em tantas delas Sarlo não conseguira se reconhecer. “Quem era aquela menina que, em meio às montanhas do sítio arqueológico de Samaipata, na Bolívia, apoiava-se numa construção de cimento vestida com uma camisa branca?”, perguntava-se.

O outro “encargo” para a escritura deste livro lhe foi feito por uma amiga, que lhe inquirira sobre outra viagem ao passado, à Amazônia peruana, e lhe indicara um livro de Philippe Descola em torno do assunto, As Lanças do Crepúsculo. Nele, o antropólogo francês discorria sobre seu conhecimento do lado equatoriano da mesma região. Sarlo e seu grupo foram os raros visitantes, na porção peruana, da comunidade indígena dos jíbaros. O livro tornou-se, desse modo, inevitável por seu ineditismo, pela possibilidade que ela viu, ali, de valorizar uma investida exploratória passada, sem se servir de nostalgia.

Parecia-lhe motivador que pudesse de certa forma reviver, por meio de seu trabalho, a escrita do ativista e presidente argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) sobre a América, comparável à de Alexis de Tocqueville. Ou que reeditasse a seu modo a primorosa narrativa de Victoria Ocampo (1890-1979), uma intelectual que, como Sarlo, realizara inúmeras viagens por Buenos Aires, Paris ou Nova York, e como ela se dedicara a difundir o pensamento cultural em uma revista, no seu caso, a Sur.

Isso tudo sem contar que, pelo louco desconforto de suas empreitadas, Sarlo relacionasse as próprias viagens com as absurdas investidas do escritor Robert Louis Stevenson (1850-1894) pelas savanas do Quênia, sobre uma mula.

O livro, ela conta, começou por esse grande desconhecido, para o qual não havia reunido anotações suficientes à época da viagem, quase cinco décadas antes. Na sua juventude, para ela e seu grupo, funcionava mais a “metafísica da presença”, uma crença de que, apenas por estarem onde poucos estiveram, lhes teria sido possível vivenciar outra história, sonegada pela oficial.

Seus muitos anos de estudo acadêmico e viagens como aquela à Áustria reforçaram sua convicção de que era necessário somar o saber das bibliotecas àquilo presenciado pelo viajante. No livro, Sarlo busca esse oxigênio mental do século XVIII europeu e constrói viagens que classifica como ideológicas, fundadas não apenas em guias ou mapas, mas em livros de história e política, manifestos e periódicos.

“Confrontar o conhecimento com a vivência é uma proposta periódica feita à humanidade, ou pelo menos ao Ocidente inteiro”, ela diz. “Durante o Iluminismo, pensou-se que o momento da compreensão intelectual era fundamental para a compreensão da experiência. Mas convenhamos que, embora isto ainda me atraia particularmente, é impossível de ser feito hoje.

As escolas globalizadas não educam massivamente para a vida, como no século que passou. Em meu país, nos anos 1920, a escola distribuía cultura, mas agora, não mais, porque essa distribuição cultural é feita de maneira globalizada, incontrolável. O maior hit televisivo no meu país, neste momento, não é A Escrava Isaura, mas uma telenovela turca.”

Suas viagens são radicais. Em lugar do turismo de consumo e prazeres, advoga o imprevisto e os sobressaltos como a grande importância de viajar. Algo semelhante ao que fez nas Malvinas, em 2013, durante a votação do plebiscito pela soberania em relação ao governo inglês. Sarlo hospedou-se na casa de uma família contrária à determinação argentina sobre a ilha e acompanhou de que modo esses habitantes optaram pela segurança militar britânica. Em uma ocasião, uma criança da família tolheu seu intuito de acompanhá-la até a escola, onde o diretor restringiu a visita da educadora argentina à sala da diretoria.

Veio ao Brasil na esperança de aqui encontrar modernidade, ainda que capitaneada pelo Estado. Brasília anunciava o futuro, embora seu presente estivesse fincado sobre desigualdades “bestiais”, essas que ela não testemunhara no próprio país. Havia uma enorme diferença entre a Praça de Maio, em Buenos Aires, e a Praça dos Três Poderes naquele 1970. “Sua beleza nos deixou pasmos, enquanto caminhávamos de um extremo ao outro pelas esplanadas”, escreve.

"A diferença era que estava deserta. Seu simbolismo se originava na potência do gesto arquitetônico e construtivo, na confiança da política fundacional, não nas camadas de passado que ainda não haviam tido tempo de se depositar sobre aquelas superfícies perfeitas. Na Praça dos Três Poderes, a decisão de um Estado e o gênio de Oscar Niemeyer haviam substituído a história, que é a grande arquiteta das outras praças latino-americanas.”