Ciclocidade: Ciclovias vão multiplicar usuários e mudar mentalidades em SP

Por Igor Felippe
O ciclista Gabriel Di Pierro é diretor-geral da Associação Ciclocidade, que nasceu em 2009 de um movimento horizontal, a bicicletada. A entidade é composta por ciclistas que consideraram importante ter uma institucionalidade para defender a “categoria”, dialogar com o poder público e trabalhar com políticas de ciclomobilidade.
A associação lançou na eleição para a Prefeitura de São Paulo, em 2012, uma carta compromisso com dez pontos para os candidatos, como a ampliação de recursos, campanhas educativas e travessia de pontes. O então candidato Fernando Haddad (PT) assinou a carta. Na discussão do Plano Diretor, a entidade manteve diálogo com a prefeitura e com a Câmara dos Vereadores.
Atualmente, a Ciclocidade está montando um comitê de acompanhamento para monitorar as obras da Prefeitura, que vai implementar 400 quilômetros de ciclovias até o final de 2015. Neste ano, a capital já ganhou 58,3 km quilômetros. Até o final do ano,a cidade terá mais 200 quilômetros implementados (leia mais na página da Prefeitura).
A implementação de ciclovias tem gerado polêmica, especialmente pela reação de setores da sociedade. Moradores do bairro de Higienópolis lançaram um manifesto contra as ciclovias e fizeram protestos. O senador Aloysio Nunes (PSDB), que é candidato a vice-presidente na chapa do tucano Aécio Neves, chamou as faixas exclusivas para ciclistas de “delírio autoritário” do prefeito Haddad.
Blog Escrevinhador entrevistou Gabriel Di Pierro, da Ciclocidade, para saber as demandas da entidade, a avaliação do plano da Prefeitura e as polêmicas abertas com a implementação das faixas exclusivas para ciclistas. Abaixo, leia os principais trechos:
Avaliação positiva
Nossa avaliação é que o projeto de 400km de ciclovias da prefeitura é de extrema importância no sentido de inverter prioridades e de reconhecer a importância de promover o uso da bicicleta. O governo havia adotado, de forma correta, a diretriz de priorizar o transporte público em relação ao individual, motorizado. Agora prioriza os modos não motorizado em relação ao motorizados. Do ponto de vista conceitual é algo corretíssimo, que está previsto na política nacional de mobilidade, está no discurso dos urbanistas e especialistas no tema, mas que não havia sido bancado politicamente por nenhum governo em São Paulo – e, talvez, em todo o Brasil.
Surpresa
Para o ciclista o plano chegou de surpresa, sem diálogo prévio, gerando alguma controvérsia até por conta disso. No entanto a maior parcela dos ciclistas, sobretudo aqueles mais organizados, perceberam a importância da proposta. Há um déficit muito grande no que diz respeito a políticas cicloviárias, que inclui campanhas educativas, redução de velocidades, estacionamentos para bicicleta, integração com trens, metrôs e ônibus e também estruturas cicloviárias como as ciclovias. Ter espaços segregados como ciclovias não é solução para tudo, pois na maior parte das vias estaremos compartilhando com os demais modais, mas há necessidade de investir nisso, sobretudo para possibilitar que mais pessoas possam utilizar a bicicleta. A ciclovia pode ser mais confortável e segura, traz de crianças a idosos para as ruas e isso é sinal de qualidade de vida numa cidade.
Proteção contra agressividade dos motoristas
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) diz que toda rua é ciclável, no entanto os mais de 17 mil kms de ruas são extremamente ruins para se andar de bicicleta, por diversos motivos, como o comportamento de motoristas, que não conhecem o CTB e não reconhecem o direito do ciclista em compartilhar espaço. Frequentemente somos agredidos verbalmente e fisicamente, é uma loucura o que se vê, a postura agressiva no trânsito mesmo que uma vida esteja em jogo.
Estrutura barata e simples
A ciclovia tem o papel de consolidar um espaço para o ciclista, sinalizar que sua presença é bem vinda e convidar as pessoas a utilizar a bicicleta. O conceito que parece ser usado pela prefeitura é o de garantir espaços, fazendo estruturas baratas e simples, com rápida implantação. Não é absolutamente novo, já temos algo parecido em outras cidades como Buenos Aires, Nova Iorque, Bogotá. É como uma ação emergencial, que pretende reverter um quadro no espaço de uma gestão e para isso a celeridade é importante.
Diálogo com a prefeitura Haddad
A cidade tinha cerca de 60km de ciclovias, apenas, portanto é um aumento muito significativo. Esse modelo não é perfeito, porque não há um planejamento propriamente, mas uma execução rápida que deixa falhas. Mas a prefeitura abriu um diálogo, já sentamos com o prefeito, com o secretário, temos mantido uma conversa e algumas coisas melhoraram do início para cá, como a largura das ciclovias, que aumentaram. Tem uma coisa que é desenvolver a capacidade de gestão e operacionalização dentro da prefeitura, é um legado que fica, a experiência, o aperfeiçoamento técnico, os equipamentos. Conforme a prefeitura faz aperfeiçoa, se estrutura melhor. Mas erros ficarão, nem tudo será perfeito. Fizemos em junho um plenária aberta proposta pela Associação, os ciclistas presentes tiraram apoio à prefeitura, sabendo que o diálogo é fundamental para melhorar o que não está adequado. Entendemos que nosso papel é o de qualificar, mas dando suporte, pois o custo político é razoável e não podemos deixar de aplaudir essa iniciativa.
Mudança de mentalidade
Esperamos que haja um aumento de ciclistas na cidade, pois estrutura gera demanda. Conforme as ciclovias se conectam mais gente vai utilizar para seus deslocamentos, o que será gradual, não imediato. Com isso, vem uma mudança de mentalidade, de perceber os benefícios, o fato de que a bicicleta ajuda a reavivar os espaços da cidade, porque te dá o contato, as coisas deixam de ser apenas passagem e o espaço público se torna importante. Vemos a bicicleta também como um instrumento, um modo de transformar a cidade, de democratiza-la.
Compartilhamento
O automóvel é um concentrador de espaço, de dinheiro, ele tende a privatizar a vida urbana, a bicicleta faz o contrário mesmo sendo também um modal individual. Ela traz a ideia de compartilhamento, de cuidado, além de ser menos poluente, prevenir doenças. Veja, o transporte coletivo possibilita o deslocamento de mais pessoas no mesmo espaço, mas não traz benefícios à saúde e ao tecido urbano como a bicicleta, que serve como apoio ou complemento no que diz respeito estritamente à mobilidade das massas, mas que dá vantagens únicas para a saúde pública e a recuperação de espaços. Veja, por exemplo, a própria Praça do Ciclista, na Paulista, que foi reavivada pelos ciclistas e virou centro de manifestações, espaço de encontros e até horta urbana.
Campanha educativas
Contudo, a política das ciclovias por si só não basta, temos alguns outros desafios para ampliar o uso de fato. Precisamos das campanhas educativas pelo compartilhamento, dos bicicletários e paraciclos em áreas de interesse e terminais, de redução de velocidades em vias. Um aspecto fundamental é a travessia de pontes, que hoje é um obstáculo para ciclistas e pedestres, especialmente das regiões mais distantes e menos ricas, onde há muito trabalhadores de bicicleta. O Jardim Helena, no extremo leste, tem um número enorme de ciclistas, o maior da cidade, assim como o Grajaú, o Jardim Brasil. Essa gente precisa de intermodalidade e de pontes adaptadas, e isso pode dar um salto no uso. É um projeto que traz uma discussão de cidade, é ela que queremos fazer e dar nossa contribuição, não querer tornar o carro um vilão, como se diz.
Bicicletas, maior eficiência
Se você considerar o que diz o Plano Nacional de Mobilidade Urbana (PlanMob), a Associação Nacional de Transporte Público (ANTP) e tantas outras referências, a relação espaço utilizado da via por pessoa transportada é muito mais vantajosa, a bicicleta chega a ser seis vezes mais eficiente. Uma boa parte dos espaços retirados eram usados como estacionamentos, ou seja, um espaço morto para circulação.
Mais carros, mais congestionamentos
Já é bastante evidente que qualquer estímulo ao carro propicia aumento dos congestionamentos, basta ver os índices históricos. O aumento de faixas de rolamento para carros simplesmente acomoda mais veículos, não resolve problemas de trânsito. Mesmo o rodízio vai sendo engolido pelo aumento da frota, que chegou aos 8 milhões de motorizados. O carro utiliza muito espaço e leva em média 1,5 pessoa dentro, isso é uma forma de concentração de espaço. Você olha a rua e só vê carros, mas menos de um terço dos deslocamentos são feitos de automóvel, segundo a OD do Metrô. Há uma situação de desigualdade tanto nos investimentos como no uso dos espaços, é um legado histórico que precisa de correção. Não se trata de fazer uma guerra com o automóvel, é apenas constatar as suas externalidades, o fato de que ele não pode ser o modal prioritário de uma cidade saudável. Mas as pessoas se ofendem se o carro não for prioridade máxima, é um privilégio adquirido que ninguém quer abrir mão.
Por mais transporte público
Evidentemente, se junto com infraestrutura para bicicleta vierem outros incentivos, as faixas de ônibus, se viesse metrôs, ótimo. O que não pode é querer condicionar uma coisa à outra, que é um discurso comum. Se formos implantar ciclovias apenas quando o transporte público for excelente corremos o sério risco de não fazer nada e deixar os ciclistas que já utilizam a bicicleta à própria sorte. É até principiológico, essas pessoas têm direito adquirido, está nas leis, cabe ao poder público garantir boas condições. E não são políticas caras, não comprometem o orçamento de transportes, que são vultuosos.
Subutilização
O que é subutilizar? Congestionamentos não subutilizam nossas estruturas? Os carros estacionados ? Voltamos à questão: qual uso queremos dar aos espaços? O que priorizar, qual o modal mais eficiente para as diversas dimensões (deslocamento da população, meio ambiente, saúde pública, desenho urbano)? Além disso, uma ciclovia tem que ter conectividade, atratividade e eficiência. Ou seja, ligar locais de interesse da forma mais inteligente possível, possibilitar um deslocamento com algum conforto e boa fluidez. O que está sendo feito é reverter um grande déficit, portanto ainda demora um tempo para que as estruturas venham a ser mais utilizadas porque os pontos não estão ligados.
Interligações
Como chegar hoje na área mais central, que recebeu as primeiras estruturas? A gente espera que essa ligação seja feita e parece que será. Hoje temos muitos ciclistas, entre 800 mil e um milhão, mas eles estão espalhados na cidade, não vão aparecer magicamente em 20 km de ciclovias. E a ideia não é convencer as pessoas a andar de bicicleta? Outras pessoas virão, queremos promover uma cultura e precisamos que se ofereça estrutura adequada para isso. Ou ficaremos nesse discurso em que todos apoiam bicicleta, a utilizam como tema de campanha publicitária, mas ela não merece nosso esforço, nosso investimento, é um conceito vazio para fingir que somos responsáveis, um pensamento que apenas retarda as mudanças reais. Loucura são os congestionamentos e as mortes no trânsito, cerca de 10 mil nos últimos dez anos. Se não avançar nessa gestão, devemos esperar a boa vontade do próximo prefeito? Lembrando que mesmo com os 400km, precisamos de mais investimento, mais ações e mais kms de estruturas. O próprio secretário de transportes reconheceu que temos pelo menos mil km de demanda.
Reação forte
A reação se deve a vários fatores. Um deles é o desconhecimento. Bastaria conhecer mais tecnicamente a questão, como mostra muito bem o documento do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, os dados comparativos que especialistas, organizações e o governo têm. Tanto conceitualmente como em termos das experiências testadas a ideia do automóvel como principal modo do planejamento da mobilidade urbana está superado. A lógica rodoviarista no entanto está encrustada na sociedade, são ideias vendidas a longo tempo. Mas mesmo os funcionários de carreira da CET estão sendo convencidos, na contramão da sua formação. Porque não há como fugir às evidências.
Dinamiza a economia
Mesmo para o comércio, há experiências que demonstram ganho de receita, como em Nova Iorque onde em uma área do Brooklin alguns comércios chegaram a ter mais de 170% de aumento de vendas. Mesmo em São Paulo alguns comerciantes souberam aproveitar o novo público potencial e relatam ganhos. O comércio de rua está perdendo espaço no caos urbano, as pessoas preferem os mega estacionamentos dos shoppings a procurar vaga na rua. Muitas vezes o principal consumidor desses locais é pedestre. Claro que é preciso pensar a coisa da carga e descarga, mas para tudo há solução, existem muitos exemplos no mundo e no Brasil para dar conta.
Lógica privada x espaço coletivo
São Paulo está acostumada com uma lógica patrimonialista e privatista. O espaço é meu, não se percebe que o espaço coletivo atende a interesses coletivos, que nem sempre são compatíveis com o uso que 
eu
 faço desse ou daquele local. A mudança nas práticas vem com resistência, mesmo que o próprio sujeito reconheça, no fim das contas, que aquilo é bom para a cidade. Isso é aqui como nas diversas partes do mundo onde se implantou estrutura para bicicleta, é um choque num primeiro momento e depois ampla aprovação. Veja Bogotá, Nova Iorque, Paris e tantas outras. Gostaria de dizer um exemplo brasileiro, mas precisamos do primeiro, quem sabe São Paulo venha a ser.
Protestos em Higienópolis
Há um superdimensionamento dessa reação. Se dez caras se manifestam contrários a uma ciclovia implantada a mídia afirma que uma rua ou um bairro inteiro estão contrários. Houve alguma pesquisa? Será que o sujeito que está satisfeito dai na rua para mostrar seu apoio, chama jornal para dizer: “gostei”. Isso dá notícia ou vale mais criar uma polarização que  não necessariamente existe? Em que medida a avalanche de cobertura negativa vai criando um 
clima
, influenciando negativamente? Isso é muito grave, porque é leviano, cria o que não existe.
Aloysio Nunes e o “delírio autoritário”
Infelizmente, também está se partidarizando. Há algumas preocupações eleitorais em jogo. Isso acaba respingando em algo que é para a cidade não para este ou aquele. Isso é uma pena, uma mentalidade atrasada. Nossa posição é que esse debate não deve ser partidarizado, ninguém ganha polarizando e querendo colocar estigmas. As políticas cicloviárias são para a cidade, é um legado importante que o próximo prefeito tem que dar continuidade, seja de qual partido for.
Apoio à Prefeitura
Apoiamos a prefeitura nesse momento, achamos que estudos técnicos são importantes sim, ter planejamento, no entanto, as estruturas são muito benéficas, várias delas em locais de reconhecida importância como a Rua Vergueiro, por exemplo. Se pensarmos como algo emergencial e também no simbolismo disso, é algo benéfico. Se pensarmos que de fato há uma disputa de espaço e que a reserva dele é uma conquista, é benéfico. Para o cara que atravessa avenidas colocando sua vida em risco, é urgente. Para a garota que quer ir de bicicleta para a escola, é urgente. Se for pensar em planejamento, a cidade tinha 300 km definidos nos planos locais estratégicos, uma lei de 2004, que não saíram do papel e que em parte têm chance de sair agora. Nem tudo é novidade.
Avenida Paulista
É o local mais importante da cidade e não tem dado espaço para o ciclista. Ali morreram duas jovens mulheres, inclusive as duas muito ligadas a nós. Houve ainda o acidente com o David. A Praça do Ciclista foi uma ocupação, a gente se apropriou para devolvê-la à cidade como um espaço vivo. É um espigão que interliga a região oeste e sul, e ambas ao centro. Como não ter nada ali? É preciso abrir espaço, o ciclista nunca vai usar as vias laterais, o que seria priorizar o motorizado e relegar à bicicleta ao espaço que resta. Numa cidade com as nossas velocidades médias, não é a aceleração que dá maior fluidez, portanto é possível abrir espaço para bicicleta. O projeto apresentado não é ruim, e se for o mais viável nós apoiaremos. Sempre é mais cômodo utilizar o bordo da direita que dá saída mais fácil às ruas laterais, mas isso exige algumas alterações importantes, deslocamento do ônibus, por exemplo. A Paulista, sendo o símbolo paulistano, deve ser sobretudo de pedestres, depois dos ciclistas e ônibus. A redução do espaço do carro é algo necessário, claramente vantajoso em médio e longo prazo. Ou vamos ser eternamente o símbolo brasileiro dos congestionamentos e da poluição.
Do Escrevinhador